Por dentro da História dos Hqs # 01 - A Era de Ouro do Underground Nacional

 
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   Underground é uma palavra inglesa que significa "subterrâneo". Metaforicamente adequada para se referir a qualquer tipo de expressão cultural que fuja da moda e dos padrões comerciais.

   Quando falamos de hqs underground, estamos nos referindo a um estilo de hq que não tem absolutamente nada a ver com Marvel, DC, super-heróis e afins. Estamos falando de um estilo sem estilo, onde o traço e o argumento se unem aos gritos para protestar, chocar, ou simplesmente entreter. Não é de se espantar que, no Brasil, com o fim da ditadura militar e, consequentemente, da censura, os anos 80 viveram um boom de hqs undergrounds. Os jovens talentos, que cresceram lendo MAD e Robert Crumb, estavam ansiosos para botar as manguinhas de fora e mostrar seus rabiscos.

   Quem tem mais de 40 com certeza deve se lembrar de Geraldão, Piratas do Tietê, Chiclete com Banana, Animal e outros títulos que ficavam ali, nas prateleiras mais altas da banca de jornal, para que as crianças não pudessem alcançar. Mas quem gostava mesmo deste tipo de hqs buscava os fanzines, publicações independentes que dificilmente chegavam às bancas ou, quando chegavam, tinham tiragens insignificantes de, no máximo, 5000 exemplares.

   Política, sexo, drogas, humor negro... tudo era válido no underground nacional. A ordem do dia era quebrar tabus e mexer com o leitor, de um jeito ou de outro. O que acabava fazendo mais sucesso e ganhando espaço nas bancas era o underground cômico, mais palatável, mas não menos polêmico.

  Meu primeiro contato com esse tipo de hq foi quando eu tinha por volta de sete ou oito anos de idade. Achei um encadernadinho do Chiclete com Banana na casa do meu tio e resolvi dar uma olhada. Ainda inocente, não entendi boa parte das piadas, mas adorei o traço do Angeli. À partir de então comecei a prestar atenção nas prateleiras mais altas das bancas de jornais e, se o jornaleiro não cortasse o meu barato, levava para casa alguma dessas hqs totalmente inapropriadas para a minha idade (escondido dos meus pais, é claro).

   Para quem produzia essas obras, além de criatividade e talento era necessário também muita força de vontade, pois com a crise econômica dos anos 80, cada mês era um desafio para conseguir levar uma nova edição até as bancas. Fora que não havia muito apoio às hqs underground, com pouquíssimos patrocinadores dispostos a ter suas marcas associadas a este tipo de hq.

   Preconceitos e ignorâncias à parte, a luta dos quadrinistas underground durou até o comecinho da década de 90 quando surgiu o Plano Collor que afundou de vez a economia do país e levou junto as pequenas editoras. Poucos títulos sobreviveram à crise.

   As hqs underground persistiram e ainda estão por aí, agora mais facilmente encontradas e divulgadas na web, mas sem aquele glamour suburbano e subversivo da década de 80.

   Mas ainda guardo com carinho alguns exemplares daquela época e, de vez em quando, dou uma folheada para matar as saudades de Rê Bordosa, Geraldão, Níquel, Piratas, Dona Marta, Bob Cuspe...


Geraldão


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   O personagem mais famoso de Glauco Villas Boas é um marmanjo que, na casa dos 30 anos, ainda mora com a mãe – com quem mantém uma relação que nem Freud conseguiria explicar. Fumando, bebendo, comendo e se picando – tudo ao mesmo tempo –, Geraldão não perde uma oportunidade de espiar a coroa tomando banho e de experimentar maneiras alternativas de "espocar a cilibina": bonecas infláveis, a enceradeira da mãe, as luvas da mãe, o xampu da mãe, tudo pode ser um bom consolo para aplacar os efeitos de uma virgindade que teima em perdurar.
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   Geraldão apareceu pela primeira vez em 1982, no livro Minorias do Glauco – editado e impresso pela gráfica do Teatro Lira Paulistana. Em seguida, ganhou espaço fixo na Folha de S. Paulo e virou a estrela principal de uma revista que levava o seu próprio nome – publicada entre 1987 e 1990 pela Circo Editorial.   Além de Geraldão, a revista trazia também Dona Marta, Doy Jorge, Casal Neuras, Zé do Apocalipse e outros personagens cujas tiras também fizeram grande sucesso.

Circo Editorial
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   A Circo Editorial era o carro-chefe do underground "comportado", ou seja, daquelas hqs alternativas que conseguiam seu espaço nas bancas de jornais. A Revista Circo, editada por Toninho Mendes e Luiz Gê, era a, digamos, mais "séria" dentre os títulos underground publicados pela editora. Nela colaboravam Angeli, Glauco, Laerte, Marcatti e vários chargistas convidados. Além das charges escrachadas a revista também trazia um pouco do underground internacional, com hqs européias e algumas americanas fora do circuito Marvel-DC.

Piratas do Tietê


    A criação mais popular de Laerte, de 1983, foi um bando de saqueadores, que navegam impunes pelo Rio Tietê, cruzando a capital paulistana, em busca de vítimas para roubar, torturar, sacanear ou, quem sabe, cortar-lhes a cabeça assim, sem muito motivo, apenas pela diversão. Os Piratas do Tietê, apesar da presença constante nas revistas da Circo Editorial, só ganharam revista própria em 1990.



   No ano seguinte, a Folha de S. Paulo começou a publicar a tira dos Piratas do Tietê. A revista foi cancelada pouco antes do encerramento de atividades da Circo Editorial, mas a tira continua sendo publicada até hoje.

   Os Piratas do Tietê já viraram peça de teatro e, depois de 25 anos de entraves entre Laerte e os produtores, viraram também filme, com previsão de estréia para este ano.

Chiclete com Banana

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    Sem sombra de dúvidas, o maior sucesso entre os títulos underground lançados pela Circo Editorial. Chiclete com Banana fez história na hq nacional, influenciando grandemente muitos artistas independentes de hoje. Nasceu em 1985, ano em que os militares trocaram a farda pelo pijama, e foi a que sobreviveu por mais tempo em meio ao caos econômico da época.

    Personagens icônicos como Rê Bordosa, Bob Cuspe, Skrotinhos, Wood e Stock entre outros nasceram nesta revista e até hoje dá para sentir a influência destes personagens no cenário pop paulistano.

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 Com seu forte teor de crítica social e humor ácido, a revista chegou a ter tiragem de 70000 exemplares por edição, um feito e tanto para uma publicação underground.
   Entre os anos de 1985 e 1995, a Chiclete com Banana teve 24 edições, 10 edições especiais e 10 edições da série "Tipinhos Inúteis".



Níquel Náusea

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   Como o nome já sugere, Níquel Náusea é uma sátira descarada de Mickey Mouse. Mas, diferente do camundongo anatomicamente incorreto com orelhas redondas, esferas perfeitas, carinha bonitinha, pensado para agradar e encantar as crianças, Níquel Náusea mostra-se como uma autêntica ratazana de esgoto, sem firulas nem rostinho bonito.

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   Criado pelo cartunista Fernando Gonsales e estreando em 1985 nas tiras do jornal Folha de São Paulo, já no ano seguinte Níquel Náusea ganhava revista própria.

   A revista Níquel Náusea fez tanto sucesso que atraiu outros colaboradores de peso como SpaccaNewton Foot Laerte Coutinho. Além disso, Gonsales ganhou por Náusea, 18 vezes o Troféu HQ Mix, sendo 11 na categoria “melhor tira nacional” (1990 a 1992, 1994, 1995, 1997, 2002, 2004, 2008, 2009 e 2013) e 7 como “melhor publicação de tiras”, pelas coletâneas publicadas pela Editora Devir (2004 a 2007 e 2009 a 2011).


Animal

Animal #1
   Uma publicação mais séria, mas não menos importante, o número um da revista Animal aterrissou nas bancas em 1988. Se hoje nenhum leitor se surpreende com publicações luxuosas, naquela época era algo raro ver um título em quadrinhos com acabamento gráfico tão bom: a revista era impressa em diferentes papéis: couché de alta gramatura para as histórias coloridas, outras em off-set paras as em preto-e-branco e algumas em jornal, para o fanzine Mau, que ocupava suas páginas centrais.

   A Animal não deixava nada a dever às melhores revistas internacionais que lhe serviram de modelo, como a norte-americana Heavy Metal, a francesa L’Echo des Savanes, a espanhola El Víbora ou a italiana Frigidaire. O conteúdo era uma impressionante amostra da produção de alguns dos melhores artistas europeus, norte-americanos e brasileiros do período, mesclando autores consagrados com o melhor da vanguarda.
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    A Animal era verdadeiramente uma revista à frente de seu tempo, o que, em última instância, talvez tenha sido sua ruína, visto que boa parte dos leitores não estava preparada para uma ruptura tão grande com o padrão vigente para publicações de HQs. Após resistir por cerca de quatro anos, a publicação acabou sucumbindo no final de 1991, vitimada como tantas outras hqs underground pelas vendas baixas, pela inflação alta e pelos diversos pacotes econômicos do malfadado governo Collor de Mello.

   As publicações aqui citadas são apenas as mais conhecidas da época, mas quando falamos de hqs underground estamos falando de centenas, talvez milhares de fanzines e títulos independentes que foram vendidos em bancas ou na porta de barzinhos ou em esquinas da Av. Paulista e que estão por aí, perdidas em sebos ou em coleções particulares. 
   O underground ainda está aí. Basta realmente ter a boa vontade de querer exercitar sua mente e fugir do convencional que estes quadrinhos certamente chegarão até você, seja pela web ou pelas mãos de um quadrinista independente vendendo diretamente sua obra ali na esquina...

Cesar Alves

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