Leitura do Mês # 01 - O Vírus é uma Linguagem, de Gilson Ribeiro.

 O Gil é um grande amigo que eu tenho e o vejo desenhando desde que nos conhecemos. Portanto estou muito feliz de escrever este artigo de sua primeira obra autoral e independente lançada, inaugurando meus escritos aqui no blog que leva o nome que eu muito estimo, o HQs Clube.

Fui ao lançamento da HQ O Vírus é uma Linguagem, aqui em Belo Horizonte, num local de grande tradição na cidade: a Casa do Jornalista, onde também passa a funcionar o Matriz, bar e casa de shows de muita história pra nós. Lá, várias bandas amadoras encontram espaço para apresentar seu trabalho.

Meu filho já leu a revista ali mesmo...

Mas vamos à análise:

O tamanho da história é bom, ou seja, não é pequeno.

O roteiro é muito bom. Os diálogos remetem àqueles filmes que eu gosto, tipo Tarantino, Almodóvar...

As letras são bem interessantes. Grandes, mas sem atrapalhar os quadrinhos e bem artísticas, pra falar a verdade.

Sobre a arte eu gostei muito das sombras. O fundo não costuma ter muita coisa e, as vezes, nem tem nada, mas não fica negligenciado. O foco é nos personagens, dá pra perceber. Também achei bacana a mudança no estilo do traço dependendo do momento da trama.

A princípio estava achando a arte meio coadjuvante. O roteiro sobressaía mais. Mas depois achei equilibrado. O quadrinho cumprindo sua função de também falar.

O personagem Robinson representa um coletivo. Eu me identifiquei nele e será comum os leitores se identificarem também. Ao menos em algum aspecto. Conhecendo o autor, sei que tem muito dele nesse protagonista.

O papel é um absurdo. Não sei como conseguiram fazer a revista com o preço que saiu.

É importante observarem os detalhes, as referências... Uma HQ pra ler mais de uma vez, pois ela nos faz pensar que ainda têm coisas a serem entendidas.

Uma ótima obra. Bom roteiro, arte legal, desenvolvimento satisfatório, consegue envolver, consegue fechar bem... Parabéns meu amigo Gil!! 

Que venham mais...

Agora apresento uma entrevista com o autor:


Como você criou este gibi ?

Eu fiz o Vírus de modo catártico, intuitivo, sem pensar. Mas é importante entender que este “sem pensar” não é simples; quero dizer, fazemos sem pensar no que estamos fazendo e o muito pensar, as fixações, e mesmo as obsessões de que nunca nos desligamos, emergem inevitavelmente, articuladas, organizadas num discurso mais ou menos bem resolvido

Discurso?

O Vírus é um discurso fluente em que desenhos e palavras se imbricam. Discurso no sentido de um conjunto de ideias organizadas por meio da linguagem, no caso a linguagem dos quadrinhos.  E é também um exercício dramatúrgico, pois meu foco principal é a “atuação” de seus personagens. Expressões fisionômicas e gestuais revelando as motivações internas que os fazem agir como agem.

O primeiro quadro da história mostra um livro nas mãos de um personagem enquanto o recordatório fala da dificuldade dele em se concentrar na leitura. Fale sobre isso, por favor, sobre a leitura e as referencias literárias que permeiam na obra.

Olha, logo em seguida nós descobrimos que este personagem a que o texto se refere não é o que aparece nos dois primeiros quadros. Trata-se de uma imagem de Corto Maltese na parede segurando um livro, enquanto o protagonista da história também segura um livro, sentado no sofá. A passagem de uma imagem para outra, para mim, já ilustra, de saída, o caráter contaminante da linguagem, como o título da história sugere. A leitura a que o personagem tenta inutilmente se concentrar é a de um livro do escritor francês Michel Tournier, cujo título é Sexta Feira ou Os Limbos do Pacífico, uma abordagem de cunho filosófico e psicanalítico da história do mais célebre dos “isolados” da literatura: Robinson Crusoé.


Por isso o personagem principal do gibi se chama Robinson ?

Sim! Mas até aí estas alusões literárias mais ou menos explicitas são apenas dispositivos para referências mais arraigadas.

Como assim ?

Corto Maltese é um herói (ou anti-herói) romântico tardio. Ele foi criado por Hugo Pratt no final dos anos sessenta, ou seja, numa época marcada por um forte inconformismo da juventude em relação ao status quo. Uma época, de certa forma, romântica, de questionamento de uma sociedade cada vez mais mecanizada e de aspiração a um retorno a estágios de maior integração entre humanidade e natureza. As aventuras de Corto parecem corresponder a essa espécie de nostalgia, pois se situam no início do século XX e ele é um nômade, um deslocado, herdeiro próximo daquele espírito de grande evasão do final do século XIX, como Rimbaud, Stevenson, Jack London e tantos outros. Um herói que se torna impossível no século XX, e que de certa forma teve seu fim antevisto por Dostoievski com seu arquétipo do “homem subterrâneo”. 

E o que seria esse “homem subterrâneo”? Um indivíduo que perdeu a ilusão de inteireza, num limite extremo entre confusão e grande lucidez; cortado ao meio em partes irreconciliáveis. Que se sente incapaz de se integrar a sociedade, convulso, rancoroso dessa desconexão com os outros, fracassado nas relações sociais, amorosas, nas possibilidades de carreira e intimamente ressentido, convicto de ser um espírito superior à mediocridade ao redor. Esse personagem perpassa o século XX em várias “encarnações”. O protagonista de Taxi Driver, por exemplo, o taxista Travis, é um homem subterrâneo. E mesmo o Coringa interpretado por Joaquim Phoenix (por sua vez, num filme que dialoga muito com a obra de Scorsese). Robinson, o personagem de meu gibi é um homem subterrâneo tal como tento descrever aqui. A passagem da imagem de Corto Maltese para a sua, logo no início do gibi, parece se referir a todo o processo de que estou falando agora. Devo alertar, no entanto, que estas são reflexões feitas em retrospecto, pois, como já disse, não criei esse conto deliberadamente, com intenções objetivas, a partir de um roteiro prévio etc.

O tema do livro é a Covid ?

Não. O tema do livro talvez seja a construção do outro pela linguagem. Sexta Feira foi real ou uma projeção delirante de Robinson Crusoé em sua insuportável solidão?

O vírus é uma linguagem é uma inversão da famosa frase de William Burroughs: a linguagem é um vírus.


Quem é Gilson Ribeiro ?


Gilson Ribeiro nasceu em Araxá, Minas Gerais, em 1972 e vive em Belo Horizonte desde 1997.

Gil é daquelas pessoas que a gente chama de “diferenciadas”. Uma das mais inteligentes que já conheci. Autodidata e com uma bagagem de conhecimento absurda, além de possuir uma capacidade singular de amarrar diversas referências nos assuntos que se propõe debater. Tudo isso com um senso de humor não exagerado!!


O livro custa R$ 25,00 e pode ser adquirido diretamente com o autor na cidade de Belo Horizonte. Com o envio sai a R$ 34,00 para todo o Brasil.


Você pode entrar em contato através das redes sociais dele: Instagram: @gilson_cesar_ribeiro

Por Edgar Fontoura



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