Por Dentro da História dos Hqs # 4 - Uma Breve História das hqs de Terror no Brasil


“A base de todos os medos humanos: uma porta fechada, levemente entreaberta.” (Stephen King)


               Nenhum outro gênero consegue tocar tanto o imaginário como o terror, independentemente da mídia que o expresse. Talvez por ser algo que mexa com os instintos mais primais do ser humano: o medo do desconhecido, da morte e a ânsia pela sobrevivência. Nas hqs, o gênero brinca ainda mais com nossos anseios ao nos dar uma frágil ilusão de controle ao virar as páginas, fugindo do assassino que nos persegue.


               

 O Início 

               É difícil precisar quando o gênero terror fez sua estréia nas hqs tupiniquins. Lá fora, na década de 30, as hqs policiais da era noir já começavam a incorporar elementos fantásticos e de ficção científica, criando um embrião do gênero de terror. No Brasil, nessa mesma época, as tiras do Garra Cinzenta, um vilão com cara de caveira que desafiava a polícia, também já davam os primeiros passos no gênero. 


A Garra Cinzenta nº 1 - A Gazeta - 09/12/1939


                Se for para estabelecer um marco, podemos dizer que as hqs da EC Comics, que arrepiavam os jovens e horrorizavam uma sociedade americana ainda bem conservadora na década de 50, deram o impulso para que, no Brasil, as publicações de editoras como La Selva e Gráfica Novo Mundo abrissem o mercado nacional para as hqs de terror. Nesta época, publicações como Noites de Terror, Sobrenatural e O Terror Negro alcançaram popularidade e estabilidade num mercado em ascensão. Mais do que isso, tornaram-se um grande sucesso, trazendo para o nicho artistas e leitores que buscavam algo mais sombrio do que historinhas de super-heróis.


O Terror Negro nº 1, La Selva, março/51                Noites de Terror nº 3, Novo Mundo, agosto/56                  Sobrenatural nº 12, La Selva, dezembro/54 

                Infelizmente, nesta época, as editoras concluíram que era mais barato comprar material importado do que investir na produção nacional. Assim, quase todas as histórias publicadas eram gringas, deixando a participação de artistas brasileiros relegada à confecção de capas, diagramação e adaptação entre outras funções menores. Raramente se via alguma produção genuinamente nacional.


 Anos 60: O terror de estado não queria concorrência... 

                As rodas da história continuaram a girar, chegando à década de 60 e, com ela, o início da infame ditadura militar e da censura. Em 1963 haviam cerca de 30 publicações de terror diferentes em banca, o auge do gênero. Porém, em 1965 foi sancionada a Lei das Publicações Perniciosas aos Jovens “que proíbe a impressão e a circulação de revistas sobre temas de crimes, violência e terror destinados à infância e à adolescência”. Obviamente, as hqs de terror sofreram um golpe e tanto. Era o fim de uma "Era de Ouro" (assim pensavam), mas, definitivamente, não o final do gênero. Mesmo que marginalizado, o terror ainda perduraria por décadas.

               Foi neste momento que os quadrinistas nacionais, que beberam da fonte das publicações da "Era de Ouro", começaram a achar seu espaço, unindo-se em torno de editoras menores, ou mesmo criando novas editoras. O terror genuinamente nacional começou a dar as caras com mais frequência nas hqs e nomes hoje consagrados como Rodolfo Zalla, Eugênio Colonnese, Flavio Colin e Júlio Shimamoto entre outros, tiveram maior oportunidade de criar e mostrar sua arte.


               O modelo das publicações ainda trazia muito material importado, mas as histórias com roteiro e desenhos 100% nacionais ganharam mais visibilidade. Entre o final da década de 60 e o início dos anos 70 destacam-se editoras como GEP, Jotaesse, Taika (antiga Editora Outubo) e Edrel, com vários títulos de menor circulação. Nota-se uma maior "experimentação" no gênero com a inclusão do humor e também de uma boa dose de erotismo em alguns títulos (driblando a censura, às vezes, sem sucesso). É nesta época, mais precisamente em 1967, que Eugênio Colonnese cria a mais famosa personagem de terror da hq nacional: Mirza, a Mulher Vampiro.


        Estórias Diabólica nº2, GEP, agosto/67                     Terror Especial nº 2, Edrel, 1968                      Mirza, A Mulher Vampiro nº 6, Jotaesse, set/69


 Anos 70: grandes editoras voltam a tocar o terror 


               À partir de 1975, grandes editoras voltam seu olhar novamente para o gênero. Enquanto Edrel e Taika fechavam suas portas em 1975 e 1978 respectivamente, Bloch, RGE e Vecchi assumiam as rédeas do mercado editorial de hqs de terror, inundando as bancas com uma grande quantidade de títulos. Ainda havia muito material importado, mas a produção nacional ganhava cada vez mais espaço. Nessa época a Bloch publicou quase toda a linha de terror da Marvel nas revistas A Tumba de Drácula, Aventuras Macabras, A Múmia Viva e Lobisomem entre outras. A Vecchi produzia Histórias do Além, Sobrenatural e, seu grande destaque, Spektro, que publicava quase inteiramente somente autores nacionais.  Mas, o grande sucesso dessa época, sem sombra de dúvidas, foi Kripta da RGE, até hoje um dos títulos mais valorizados e procurados por colecionadores.


A Tumba de Drácula nº 1, Bloch, janeiro/77                           Spektro nº 2, Vecchi, 1978                           Kripta nº 1, RGE, setembro/76                     


 Anos 80: o terror em crise 


               Entre altos e baixos, as hqs de terror tiveram um bom sucesso até o início dos anos 80 quando a crise econômica atingiu em cheio o mercado. Várias editoras fecharam as portas ou reduziram drasticamente o número de publicações. Na contramão da crise, surge em 1981 as revistas Calafrio  Mestres do Terror da Editora D-Arte. Num verdadeiro ato de heroísmo, chegaram a 52 e 62 números respectivamente, sobrevivendo aos malfadados Plano Cruzado e Plano Collor e terminando somente em 1993. Sofreram com a periodicidade irregular em seu final, chegando a sair anualmente, mas foram o grande marco das hqs de terror na década de 80. O destaque curioso dessas publicações certamente foi o espaço dedicado à arte dos leitores (às vezes surpreendente, às vezes terrível). 


Calafrio nº 1, D-Arte, 1981                                                                           Mestres do Terror nº 1, D-Arte, 1981


 Anos 90: O terror brasileiro no limbo 


               À partir dos anos 90 a produção nacional caiu vertiginosamente, com poucos títulos de qualidade chegando às bancas. No início da década, a linha de hqs de terror da Bloch, a única ao lado da D-Arte em que o gênero ainda resistia, já agonizava. Os últimos títulos periódicos do selo Capitão Mistério (Histórias Reais de Drácula e Histórias Reais de Lobisomem), chegavam ao seu final em 1991. Em 1993 ainda foi publicada uma edição especial (Drácula Especial) que encerrou definitivamente a linha de terror da Bloch.

               Um destaque positivo dessa década foi a Coleção Assombração da Ediouro que durou apenas oito números, mas trouxe histórias clássicas e outras inéditas de mestres como Júlio Shimamoto, Flávio Colin e Mozart Couto. 


Histórias Reais de Lobisomem nº 18, Bloch, 1991                Drácula Especial, Bloch, 1993                   Coleção Assombração nº 6, Ediouro, julho/95
 

               Das hqs estrangeiras, destaque para Hellraiser (1991) lançada pela Abril, que durou apenas quatro números por aqui. A Record fez uma tentativa ousada de resgatar o material da EC Comics lá da década de 50 e lançou, neste mesmo ano, Cripta do Terror. Infelizmente, apesar da qualidade excepcional do material, acabou não fazendo sucesso e durou apenas sete números. Outra aposta da Record em 1991 foi Dylan Dog, o "Detetive do Pesadelo", que durou onze números, sendo relançada posteriormente pela Conrad e, atualmente, pela Mythos. Em 1995 a Abril lançou Vertigo, título que trazia as histórias sombrias de Hellblazer, durou doze números e seria relançado posteriormente em 2002 pela Opera Graphica com duração de dez números. Foi relançada novamente em 2009 pela Panini, com duração de cinquenta e um números, mas com menos ênfase no terror. 

               Outros títulos da década de 90 que "flertaram" com o terror foram Sandman, Preacher, Witchblade, Monstro do Pântano e Spawn. Lá para o final da década, já em 1998, surgiu por aqui Hellboy.


Hellraiser nº 1, Abril, abril/91                             Cripta do Terror nº 1, Record, fevereiro/91                         Vertigo nº 1, Abril, março/95


 Anos 2000: os gringos dominam as bancas 


               Já nos anos 2000, nenhuma editora estava querendo se arriscar num título periódico, então o gênero se fez presente principalmente em coletâneas e edições especiais. A exceção foi a Editora Hq Maniacs que lançou em 2006 Os Mortos Vivos, hq que deu origem nos Estados Unidos ao seriado de tv The Walking Dead. Mais tarde, com o sucesso do seriado alavancando as vendas, a hq foi relançada em formato encadernado em 2012 com o nome original The Walking Dead.

               Em 2003 a Devir trouxe 30 Dias de Noite, um grande sucesso que inspirou o filme homônimo de 2007. A série teve seis encadernados, sendo dois spin-offs.

               A Mythos continuou investindo em Hellboy e em algumas edições especiais. Destaque para os encadernados de Cripta (2011)publicação em quatro volumes que resgatou o material da Warren Publishing que já havia sido publicado por aqui na saudosa Kripta da RGE. Surfando na mesma onda, a Devir lançou em 2012 Creepy, que tinha praticamente a mesma proposta, também com material da Warren Publishing.


       30 Dias de Noite, Devir, maio/2003             Os Mortos-Vivos nº 1, Hq Maniacs, maio/2006                   Cripta nº 1, Mythos, fevereiro/2011           
  

  

 Mangás: O terror nipônico 


             Por volta de 2003, os mangás começaram a ganhar espaço por aqui e, de quebra, deram um novo fôlego ao terror.  A Conrad apresentou o horror "eroguro" (erotic grotesc) do autor Suehiro Maruo em O Vampiro que Ri (2004) e Paraíso - O Sorriso do Vampiro (2006), obras bastante ousadas, mas que tiveram boa aceitação. Logo depois, as obras de Hideshi Hino, consagrado autor de terror japonês, foram publicadas pela Conrad (Panorama do Inferno, 2006) e pela Zarabatana Books (O Garoto Verme, 2008, Oninbo e Os Vermes do Inferno, 2009). Outro mestre, Junji Hito, que já foi publicado pela Conrad (Uzumaki - A Espiral do Horror, 2006) vem sendo publicado mais recentemente em edições de luxo pela Darkside Books, Devir e Pipoca & Nanquim.

               Desde então, apesar de não ser o gênero de maior sucesso entre o público otaku, os mangás de terror ganharam publicação regular por aqui. 


    O Vampiro Que Ri, Conrad, Julho/2004                           Uzumaki nº 1, Conrad, Julho/2006                 O Garoto Verme, Zarabatana Books, agosto/2008
  


 E a Marvel foi infectada... 


              A Marvel, inesperadamente, voltou a investir no terror neste novo milênio. Em 2010 chegava às bancas brasileiras Marvel Terror, título que, infelizmente, durou apenas cinco números por aqui. As histórias traziam releituras do Lobisomem e Drácula, algumas histórias inéditas no Brasil do Motoqueiro Fantasma e os inusitados e bizarros Zumbis Marvel.

               Zumbis Marvel talvez tenha sido a aposta mais arriscada da Marvel ao brincar com os universos alternativos de seus heróis. Mas era uma época em que o tema zumbis estava na moda e a aposta foi certeira: foi um sucesso. Apareceram por aqui primeiramente em Marvel Max nº 41 e depois ganharam uma série encadernada em quatro volumes em 2013.

               A Panini ainda lançou em 2014 a Coleção Marvel Terror - A Tumba do Drácula, resgatando as histórias da década de 70 do personagem. Foram oito encadernados com direito até mesmo a box protetor. Tentou-se incluir nesta coleção também as histórias clássicas do Lobisomem e do Motoqueiro Fantasma, mas não fizeram o mesmo sucesso e ficaram somente com um único volume cada.            

 

 Marvel Terror nº 1, Panini, Novembro/2010               Zumbis Marvel nº 1, Panini, novembro/2013               A Tumba do Drácula nº 1, Panini, Outubro/2014


               Em 2019, tentando surfar na "onda zumbi", a DC lançou a minissérie DCeased (DComposição, aqui no Brasil). A premissa era basicamente a mesma: os heróis do Universo DC transformados em monstros mortos-vivos. Teve seis volumes lá fora. Aqui, ainda está sendo publicada e está no volume quatro. Foi bem avaliada, mas não chegou nem perto do sucesso dos Zumbis Marvel.

DComposição nº 1, Panini, agosto 2020


 Gore: O horror levado ao extremo 


               Em 2019 uma das obras mais chocantes e polêmicas de todos os tempos chegou ao Brasil: Crossed. Talvez a hq mais sanguinária e doentia já produzida, Crossed eleva o terror gore a um outro patamar a ponto de provocar pesadelos em leitores mais sensíveis. A violência e a crueldade atingem níveis tão absurdos que, mesmo que você já saiba o que esperar antes de abrir a hq, tem momentos em que você tem que parar e respirar fundo se quiser chegar até o final. Só para se ter uma idéia, a maioria das capas (que são as imagens mais "leves") foi censurada no exterior.

               Infelizmente, para os fãs do gênero, os altos preços, o público restrito e uma estratégia editorial fraca fizeram com que a obra fosse cancelada por aqui com apenas quatro volumes. 


Crossed nº 1, Panini, fevereiro/2019                                                                   Crossed nº 2, Panini, maio/2019        

                         

Ainda há espaço para a hq de terror genuinamente nacional? 


               Obviamente estamos bem longe daquela época em que havia títulos nacionais à vontade e para todos os gostos, mas o terror ainda vive!

               Em agosto de 2011, O terror nacional, cada vez mais relegado à marginalidade, sentiu um sopro de ânimo: a editora Cluq - Clube dos Quadrinhos adquiriu de Rodolfo Zalla os direitos de publicação da antiga Calafrio e relançou-a sob o nome de Calafrio - Edição de Colecionador. O título continuou à partir do número 53, onde havia parado na D-Arte. Porém, a tiragem era muito limitada e a distribuição ficou restrita à loja Comix de São Paulo, portanto poucos leitores tiveram acesso. Durou até o número 64.

                Em 2015, a editora paranaense Ink & Blood Comics adquiriu os direitos de publicação tanto da Calafrio quanto da Mestres do Terror e relançou as duas séries. Por sugestão do próprio Rodolfo Zalla, as duas hqs foram relançadas à partir da numeração encerrada na D-Arte, ignorando a fase anterior da Calafrio - Edição de Colecionador, a qual quase ninguém teve acesso. As duas séries continuam em publicação até hoje.

        Calafrio nº 75, Ink & Blood Comics, abril/2022                                                 Mestres do Terror nº 77, Ink & Blood Comics, fevereiro/2022

               Para quem não abre mão da produção genuinamente nacional, aqui vão alguns exemplos de ótimos títulos publicados nos últimos anos:























             
                   Para quem pode e quer investir em novos talentos, o Catarse é um site de financiamento coletivo que apoia diversos projetos artísticos, entre eles hqs de terror:


               A internet ainda disponibiliza vários sites onde se pode encontrar obras online de autores independentes que, com dedicação e talento, recusam-se a deixar que o terror se perca no gélido e escuro limbo do esquecimento:

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