Mestres & Artes # 02 - A Devassidão Divina de Carlos Zéfiro

"O sexo faz parte da natureza. Eu só sigo a natureza."

(Marilyn Monroe)


      Em 26 de Setembro de 1921, na cidade do Rio de Janeiro, nascia Alcides Aguiar Caminha. Carioca, boêmio, compositor, funcionário público, casado, pai de cinco filhos...

      Admita: essa descrição não lhe diz absolutamente nada. Mas, se voltarmos aos anos 50, procurarmos um jornaleiro e lhe pedirmos discretamente por um "catecismo", ele vai puxar de trás da prateleira mais alta da banca uma revistinha minúscula, em preto e branco, que revelará quem foi, na verdade, o Sr. Alcides.




      No final dos anos 40, uma época em que a comercialização de pornografia podia até acabar em cadeia, era preciso uma certa coragem para investir em "sacanagem", tanto para quem produzia quanto para quem comprava ou vendia. Então, para poder produzir e vender diretamente aos jornaleiros sua obra, praticamente artesanal, mas de uma criatividade astronômica, o Sr. Alcides valeu-se de um pseudônimo para garantir-lhe o anonimato (que perduraria durante décadas, mesmo após sua aposentadoria). Nascia, assim, Carlos Zéfiro.


      Carlos Zéfiro foi o autor de centenas de hqs erótico-pornográficas produzidas entre a década de 50 e o final dos anos 70 e é cultuado como um pioneiro da pornografia nacional (um reconhecimento tardio já que escondeu sua atividade artística durante a maior parte de sua vida, inclusive da própria família). Autodidata, seu traço era simples e baseado em publicações estrangeiras das quais ele aprendia por observação e reprodução. 
      As hqs, impressas em preto e branco, no formato de 1/4 de folha ofício, geralmente com 32 páginas e apenas um quadro por página, eram apelidadas de "catecismos". A origem desse nome é controversa, mas acredita-se que seja devido ao seu formato que lembrava os pequenos livretos religiosos que eram vendidos nas igrejas, logo após a missa, naquela época.

      O traço, sob um olhar mais crítico, pecava bastante em qualidade. Porém, como já dito, pornografia era algo ilegal na época, então a oferta deste material era baixa e a demanda era alta. Resumindo: qualidade à parte, fazia muito sucesso! Os catecismos esgotavam rapidamente e alguns chegaram a ter uma tiragem de 30.000 exemplares.
      Talvez seja difícil para nós, na era da internet, compreendermos o que significavam os catecismos para a juventude daquela época. Hoje, com um smartphone na mão, o acesso a milhares de sites de conteúdo pornográfico gratuito é instantâneo. Mas, as imagens contidas naquelas pequenas hqs eram a única fonte de acesso a um conteúdo proibido e completamente desconhecido para muitos adolescentes. Conversar abertamente sobre sexo ainda era tabu para a sociedade conservadora e religiosa da época. Essas hqs foram a iniciação para muitos imberbes que, muitas vezes, nem compreendiam o que estavam vendo naquelas páginas.

      Carlos Zéfiro (bem como os seus muitos imitadores) continuou produzindo os seus catecismos sem nenhuma pretensão de reconhecimento artístico, apenas pelo prazer e pelo retorno financeiro (modesto, acredita-se). Os leitores até se perguntavam quem seria aquele "devasso" cuja pena incansável produzia tanta sacanagem, mas o artista, sabiamente, fez questão de manter o anonimato. Sabia que isso poderia trazer problemas para a carreira de funcionário público do Sr. Alcides bem como para sua família.
      Na década de 70, os milicos (sempre eles), abriram uma investigação para tentar descobrir quem era esse inimigo da "moral e dos bons costumes". Chegaram a prender o editor Hélio Brandão, um amigo do artista, sob suspeita de ser o usuário do pseudônimo Carlos Zéfiro, mas a investigação não chegou a lugar nenhum. Acredita-se que Alcides Caminha, motivado por este episódio e pelas vendas já em baixa, tenha cessado de produzir nesta época, aposentando-se de sua atividade artística clandestina.
       O mistério sobre a identidade real de Carlos Zéfiro ainda perduraria por mais de uma década. Talvez ele ainda preferiria continuar na clandestinidade se não fosse um episódio ocorrido em 1991 quando o desenhista Eduardo Barbosa deu uma entrevista ao jornal A Notícia alegando ser Carlos Zéfiro. Meses depois, aceitando o convite de Juca Kfouri, Alcides Caminha soltou o verbo numa entrevista para a revista Playboy. Contou toda a trajetória de sua obra com tanta precisão de detalhes que não havia como duvidar de sua autenticidade enquanto autor. Junto a isso, veio o reconhecimento por parte do amigo Hélio Brandão. O Brasil finalmente conhecia Alcides Caminha. Sua obra sairia da marginalidade e ganharia lugar na cultura pop.

      Em 1996, a cantora Marisa Monte usou diversas ilustrações de Carlos Zéfiro no encarte de seu CD Barulhinho Bom.
      Em 2011, o trabalho de Carlos Zéfiro ganhou o mundo quando seus quadrinhos passaram a ser exibidos no Museu do Sexo em Nova York. Neste mesmo ano estreava a peça teatral "Os Catecismos Segundo Carlos Zéfiro" escrita e dirigida por Paulo Biscaia Filho.
      Em 2018 foi lançado o livro "Deus da Sacanagem – A vida e o tempo de Carlos Zéfiro", do jornalista Gonçalo Junior.
      Alcides Caminha viria a falecer em julho de 1992, apenas nove meses após sair do anonimato. Neste curto período, porém, obteve o merecido reconhecimento de sua obra. Participou com destaque da I Bienal de Quadrinhos em novembro de 1991 além de dar inúmeras entrevistas aos principais veículos de imprensa da época. Dois dias antes de sua morte, foi agraciado com o Troféu HQ Mix, como reconhecimento da importância de sua obra.

      Para os leitores de hoje, talvez a obra de Zéfiro pareça até um pouco inocente. Mas, sem sombra de dúvida, a simplicidade e honestidade de seu traço deram a força e a coragem que o gênero erótico-pornográfico precisava para sair da marginalidade e ganhar espaço, sem vergonha de se mostrar, nas prateleiras dos colecionadores.

Por Cesar Alves

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